Disseram que é seu,
como quem arranca fruta do quintal e ainda te acusa de roubo.
Pegaram a batida do nosso tambor,
pintaram de verniz europeu,
puseram-lhe um nome francês ou inglês
e juraram, diante da História,
que nasceu em Paris,
em Londres,
ou na cabeça de um “génio branco”.
Disseram que a lâmina que corta a cana,
a roda que gira a água,
o ferro que dança no fogo,
a matemática que calculava pirâmides
era obra de estrangeiros iluminados,
e não de mãos escuras queimadas de sol,
que sabiam, antes do mundo saber,
que ciência e espiritualidade podiam morar na mesma casa.
Roubaram a música e chamaram-lhe jazz,
mas o sopro que nasceu nas vielas de Nova Orleães
tinha sangue de escravos de Luanda, Benguela, Kongo,
tinha batuque de quilombo,
tinha saudade de mãe perdida no cais.
Pegaram o semba,
cortaram-lhe o pé descalço,
vestiram sapato de verniz,
e chamaram-lhe salsa,
chamaram-lhe samba,
chamaram-lhe rumba.
Mas quando a pergunta é “quem inventou?”
apontam para Havana,
para o Rio,
para Nova Iorque,
escondendo Malanje,
Cuanza Sul,
e as margens do Zaire.
Disseram que a escultura era deles,
porque no museu a madeira perdeu cheiro de floresta,
e a máscara de guerra virou “arte exótica”.
Roubaram as máscaras Fang,
os bronzes do Benim,
os marfins de Cabinda,
e disseram:
"Património mundial".
Mas quando tentamos tocar,
o segurança diz: “Proibido”.
A escrita também roubaram.
Quando olham para os hieróglifos,
dizem “Egipto antigo, civilização mediterrânica”.
Esquecem que o Nilo nasce negro,
e que antes de Roma,
antes da Grécia,
Kemet já escrevia, contava e media o tempo.
Disseram que a lâmpada era de Thomas Edison,
mas não contam de Lewis Latimer,
filho de escravos fugidos,
que desenhou o filamento que deu luz à luz.
Falam de aviões e Wright Brothers,
mas silenciam Alberto Santos-Dumont e muito mais ainda
silenciam William J. Powell,
negro piloto que ousou ensinar outros negros a voar
quando o céu ainda era segregado.
Contam de faróis no mar como se fossem europeus,
mas não falam de Augustus Jackson,
inventor negro que deu sabor ao mundo com gelado,
nem de Garrett Morgan,
que inventou o semáforo para organizar o trânsito das ruas,
porque o caos não podia ser resolvido por um homem negro.
Falamos de medicina e lembram Pasteur, Fleming, Koch,
mas calam Dr. Charles Drew,
que inventou o banco de sangue moderno,
salvou milhões,
e morreu ironicamente porque um hospital branco recusou tratá-lo.
Disseram que filosofia era grega,
mas esqueceram Ptahhotep,
que muito antes de Sócrates já ensinava ética.
Calam Cheikh Anta Diop,
que provou com ciência que África não era berço da ignorância,
mas berço da civilização.
Roubaram o penteado e chamaram-lhe “fashion”,
roubaram a dança e chamaram-lhe “trend”,
roubaram o gingar da fala e chamaram-lhe “slang”,
roubaram o corpo e chamaram-lhe “exótico”,
roubaram até o riso e chamaram-lhe “autenticidade tropical”.
Mas o mais doloroso não foi só o roubo.
Foi escreverem livros,
construírem universidades,
ensinarem gerações inteiras
que nós, pretos, nada tínhamos inventado,
nada tínhamos criado,
que vivíamos nus à espera da luz que vinha de caravela.
O que era nosso, disseram que é deles.
E ainda hoje, quando tentamos contar,
dizem que é “vitimização”,
“complexo pós-colonial”,
“exagero ideológico”.
Mas a História não mente,
mentem os que a escrevem para caber no retrato deles.
Nós sabemos que sem África
o mundo não teria bússola,
não teria café,
não teria ferro moldado como arte,
não teria ritmo no pé,
nem sabor na boca,
nem ciência no bolso.
Foi um negro que descobriu como navegar pelo céu lendo as estrelas.
Foi um negro que fez a ponte de palavras entre tribos e impérios.
Foi um negro que moldou o ouro sem máquina.
Foi um negro que ensinou a plantar em terras secas,
a guardar chuva em pedra,
a construir casa fresca no calor.
E, no entanto, disseram que é deles.
Mas eu escrevo para devolver.
Para que os nomes voltem à boca certa:
Imhotep, pai da medicina;
Nzinga Mbandi, rainha estratega;
Benjamin Banneker, astrónomo e inventor;
George Washington Carver, mestre das plantas e da química;
Solomon Linda, que cantou “Mbube” antes de virar “The Lion Sleeps Tonight”;
Miriam Makeba, que levou a voz de África ao mundo sem pedir licença;
Toussaint Louverture, que fez tremer impérios;
Patrice Lumumba, que pagou com sangue a ousadia de ser livre.
Eles podem riscar os nomes dos livros,
mas não podem riscar dos ossos.
O ADN lembra.
O tambor lembra.
O corpo lembra.
E nós lembramos também.
Porque cada vez que um menino negro inventa,
mesmo que roubem,
o mundo volta a girar com batida africana.
Cada vez que uma mulher negra cozinha,
mesmo que vendam como “culinária internacional”,
o sabor volta para casa.
Cada vez que um jovem negro dança,
mesmo que filmem e viralizem sem crédito,
o passo volta para o chão que o ensinou.
Não é só herança
Não é só memória
é cobrança do legado.
Podem até dizer outra vez que é deles,
mas o vento leva a mentira,
a água corrói o papel,
e a verdade cresce como capim:
pisam hoje,
amanhã está de pé.
E um dia, quando o museu devolver,
quando a História se reescrever,
quando o mundo aprender a dizer os nomes sem engasgar,
vamos rir.
Não como quem venceu,
mas como quem nunca perdeu,
porque, apesar do roubo,
o que é nosso sempre soube voltar.
Até lá, escrevo.
Canto.
Digo alto:
Disseram que era seu.
Mas eu sei,
tu sabes,
nós sabemos —
foi feito por mãos negras.
E o mundo, cedo ou tarde,
vai ter que confessar.
Sofrido das Chagas