Minha mãe,
a vida matou em nós a esperança que já não é mística,
pois nos teus olhos, ainda arde o lume antigo
que tenta acender fogueiras no barro molhado da miséria.
Minha mãe,
a esperança somos nós,
os teus filhos partidos para uma fé que alimenta a vida,
mesmo quando a vida parece um cemitério de sonhos.
Hoje somos as crianças nuas
e desprovidas de dignidade,
os garotos sem escola, sem pão, sem mesa posta,
porque o contentor de lixo tornou-se nossa mesa
e a rua nossa sala de jantar.
Somos nós mesmos,
quais contratados a queimar vidas na austeridade,
homens negros, sábios ignorantes
que devem respeitar o homem branco
agora preto em Lexus e temer o rico.
Somos os teus filhos
dos bairros além,
aonde não chega a luz elétrica
nem a água canalizada,
onde homens bêbedos caem abandonados
ao ritmo dum batuque de morte:
morte de fome, de indigência,
morte silenciosa que nem funeral merece.
Mas, minha mãe,
se a vida matou em nós essa mística esperança,
também nos deu a raiva santa
que pode rasgar o silêncio.
Não seremos sempre os mesmos
nem sempre o lixo será o nosso prato,
nem sempre a escuridão será a nossa lâmpada,
nem sempre o batuque será apenas o compasso da morte.
Minha mãe,
há-de nascer de novo a esperança,
com o rosto de quem já viu tudo
e mesmo assim escolhe ficar de pé.
Porque a esperança, minha mãe,
não é só o que nos prometeram
é o que vamos tomar com as nossas próprias mãos,
mesmo que para isso
tenhamos de reinventar a vida.
Sofrido das Chagas — adaptado de "Adeus a hora da largada" de A. A. Neto.
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