quinta-feira, 7 de agosto de 2025

VOLTAR SEM NUNCA TER IDO (DIÁSPORA E RECONEXÃO)

 

Cheguei ao aeroporto de Luanda com mala na mão e dúvida no peito,
vinte anos fora, carregando um mapa feito de efeito.
Na Europa diziam: “Voltar pra África? Por quê, pá?!”
E eu respondia: “Porque nunca saí de lá.”

Fui embora com oito anos, sotaque ainda intacto,
mas aprendi cedo que lá fora ser africano é contrato:
um acordo invisível pra sorrir quando te chamam de tribal,
pra fingir que és grato quando te tratam como banal.

Na diáspora, carregamos um continente na mala de mão,
cada lembrança embrulhada entre cuecas e oração.
E por mais que tentemos vestir a pele alheia,
há sempre um batuque interno, uma dikanza ou Quissange que a alma incendeia.

Morei em Paris, com nome reduzido no interfone,
onde Ndongala virou "Dom", pra caber no telefone.
Comi baguete, fiz selfie na Torre, estudei filosofia,
mas faltava-me funge e a confusão da tia Sofia.

A reconexão começou aos poucos: um prato de muamba na Holanda,
um semba dançado de canto no bar em Amsterdã.
Um velho com sotaque igual ao do meu avô
me disse: “Filho, és de onde? Isso não se apagou.”

E não apagou.
Mesmo com passaporte azul e língua partida,
a África voltava em sonho, em cheiro, em ferida.
Num tambor na rua, num olhar de primo perdido,
numa música do Bonga, Waldemar Bastos 
e general Cambuengue, num sotaque escondido.

Voltar não foi só geográfico — foi interno.
Foi aceitar que não era “nem daqui nem de lá”,
mas de um entre-lugar onde a memória mora e a saudade está.

No musseque, reconheci o caminho pelo pó.
O sol me saudou com tapa e calor,
e a vizinha disse: “Esse aí é filho de alguém, sim senhor.”
A mulher do mercado perguntou: “É você que voltaste do estrangeiro?”
E eu: “Não voltei. Só vim lembrar quem sou, sem dinheiro.”

Na diáspora, me disseram que pertencer era luxo.
Aqui, percebo que pertencer é raiz, não é truque.
Não é decorar provérbios do Chinua Achebe,
é sentir que tua avó vive em ti quando tua mão escreve.

Reconexão não é repetir o passado,
é rever o futuro com os olhos de quem foi empacotado.
É misturar, sim — mas com direção.
É falar inglês, mas jurar em umbundu com convicção.

Hoje tenho casa em dois mundos e chão em nenhum,
mas onde boto o pé, levo Nzinga e Kwame Nkrumah em comum.
Dou workshops de História oral com Wi-Fi e candeeiro,
e ensino que reconexão é um acto inteiro.

Não se trata só de voltar ao continente,
mas de aceitar a tua negritude como continente consciente.
De saber que, mesmo no frio de Berlim,
há um pedaço de Angola no modo como tocas tamborim.

Ser diáspora é estar longe e mesmo assim ser raiz,
é fazer do corpo mapa e da lembrança cicatriz.
É resistir, não só na ausência, mas no retorno:
não como quem volta ao lar — mas como quem reacende o forno.

Voltar sem nunca ter ido.
Reconectar sem ter esquecido.
Fazer do exílio não um fim,
mas o caminho de volta ao começo do tambor que há em mim.


Sofrido das Chagas 

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