terça-feira, 12 de agosto de 2025

NATUREZA E CURA AFRICANA

 

 

No ventre quente da África antiga,

onde o sol beija a terra com língua amiga,

vive a ciência que o livro não ensina,

guardada no cântaro, no cântico, na esquina.

Não vem de jaqueta, não fala em latim,

mas na língua das folhas e raízes sem fim.

É saber da avó, onde cada planta é receita inteira.

 

O maculo, esse verme pequeno, atrevido,

que acorda de noite o sono perdido,

foge da infusão de casca da mulemba,

que, ao ferver, na panela se lembra

do gosto amargo que limpa a barriga,

mandando embora a praga que intriga.

Lá no pilão, mãos firmes socam

sementes secas que os anciãos invocam,

misturando pó com gotas de fé,

pois cura também é acreditar no que é.

 

O gimbaço, febre que arde em segredo,

é combatido com folha de massambala sem medo.

Põe-se no chá, deixa o vapor subir,

que a boca sorve antes de dormir.

A planta aquece, o corpo acalma,

a febre desce, o suor embala,

e a noite vira um campo de descanso,

onde o mal recua, manso, manso.

 

E o mazote (enxaqueca), martelo na mente,

que bate sem pena, rija, insistente,

encontra na raiz de n'gombe-ya-mbuzi

o antídoto simples que o mato produz.

Seca-se ao sol, mói-se no pilão,

ferve-se em barro, bebe-se em mão.

O aroma sobe, a dor se rende,

o sangue flui, o peso se desprende,

e a vista, antes turva, clareia devagar,

como se o dia voltasse a acordar.

 

O tifo, traiçoeiro visitante,

que chega faminto e fica constante,

tem medo do chá de folha de mutete,

que o povo conhece, que o mato repete.

Verde escuro, sabor profundo,

limpa o sangue, varre o mundo

interno de febres e delírios quentes,

deixando o corpo leve, contente.

 

E a malária, sombra antiga e feroz,

que canta o zumbido perto de nós,

não resiste à casca de quissonde amarga,

das folhas verdes esperança do amargo né,

que a avó prepara e larga

num cozido lento, horas no fogo,

até que o líquido, denso e novo,

leve ao doente força e coragem,

pondo o mosquito em outra viagem.

 

Mas há mais dores que a terra conhece,

e mais remédios que o mato oferece.

Para a tosse brava que o peito aperta,

o chá de eucalipto africano desperta

o ar preso nas vias cansadas,

soltando a respiração nas madrugadas.

Para feridas que teimam em fechar,

o sumo de babosa vem ajudar,

refrescando a pele, limpando o corte,

chamando a vida de volta à sorte.

 

O bicho-de-pé que insiste em ficar

na sola do homem que veio da lavra,

sai correndo quando o sal se mistura

com óleo de palma na cura segura.

E a gastrite, fogo no estómago ardente,

encontra na folha de maboque um presente,

que acalma o ácido, adoça a boca,

e deixa a dor fraca, quase louca.

 

O saber africano não é só beber,

é também rezar, soprar, benzer.

É a mão que toca o ombro febril,

o cântico baixo, o conselho subtil.

É saber que a terra fala baixinho,

e que todo remédio tem seu caminho.

 

As folhas se colhem com lua minguante,

pois dizem que assim são mais curantes.

As raízes se tiram ao romper da aurora,

quando o orvalho ainda chora, chora.

E ao cortar o galho, pede-se licença,

pois curar exige mais que ciência:

exige respeito, palavra e cuidado,

pois planta também sente o seu fado.

 

Na sombra do embondeiro, um velho sentado

conta histórias de quando foi curado.

Diz que um dia, com febre e delírio,

foi salvo por chá de mulondo e lírio.

"Meu filho", diz ele , "a planta não mente,

mas é preciso colher no dia presente,

sem pressa, sem raiva, com alma aberta,

pois a cura só entra na porta certa."

 

A raiz de quiabo seco é boa pro ventre,

e o pó de gergelim fortalece a gente.

O óleo de moringa limpa o sangue e o fígado,

e o chá de limão tira o frio tímido.

Cada erva é um verso, cada folha um refrão,

cantado na boca e levado na mão.

 

Não há bula, nem caixa colorida,

mas há histórias que salvam a vida.

Dizem que quem bebe chá de mutamba

tem o coração forte, a alma que samba;

e que a folha de ngongue no banho morno

tira do corpo a indispoção e o cansaço. 

 

Assim, a cura africana é poema e ciência,

é fé e prova, é amor e paciência.

Não despreza o hospital nem a injeção,

mas sabe que a raiz também é solução.

Que o cajueiro dá fruto e dá pele,

que o embondeiro dá sombra e dá mel,

que a quissanje cura com som e memória,

pois música também é parte da história.

 

Na aldeia, ao cair da tarde,

a fumaça sobe da panela que arde.

Ali fervem folhas que o mato ofereceu,

ali cura-se o corpo e o que nele cresceu.

E quando o doente levanta sorrindo,

o povo agradece, o tambor vai batendo,

e a noite, vestida de estrelas abertas,

guarda no céu as curas secretas.

 

Pois África é terra que fala em verde,

que quem ouve e aprende nunca se perde.

É farmácia viva, de chão a céu,

onde Deus escreveu receita sem papel.

E no amanhecer, com o galo a cantar,

o povo sabe: a cura vai continuar.

 

Sofrido das Chagas

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