No ventre quente da África antiga,
onde o sol beija a terra com língua amiga,
vive a ciência que o livro não ensina,
guardada no cântaro, no cântico, na esquina.
Não vem de jaqueta, não fala em latim,
mas na língua das folhas e raízes sem fim.
É saber da avó, onde cada planta é receita inteira.
O maculo, esse verme pequeno, atrevido,
que acorda de noite o sono perdido,
foge da infusão de casca da mulemba,
que, ao ferver, na panela se lembra
do gosto amargo que limpa a barriga,
mandando embora a praga que intriga.
Lá no pilão, mãos firmes socam
sementes secas que os anciãos invocam,
misturando pó com gotas de fé,
pois cura também é acreditar no que é.
O gimbaço, febre que arde em segredo,
é combatido com folha de massambala sem medo.
Põe-se no chá, deixa o vapor subir,
que a boca sorve antes de dormir.
A planta aquece, o corpo acalma,
a febre desce, o suor embala,
e a noite vira um campo de descanso,
onde o mal recua, manso, manso.
E o mazote (enxaqueca), martelo na mente,
que bate sem pena, rija, insistente,
encontra na raiz de n'gombe-ya-mbuzi
o antídoto simples que o mato produz.
Seca-se ao sol, mói-se no pilão,
ferve-se em barro, bebe-se em mão.
O aroma sobe, a dor se rende,
o sangue flui, o peso se desprende,
e a vista, antes turva, clareia devagar,
como se o dia voltasse a acordar.
O tifo, traiçoeiro visitante,
que chega faminto e fica constante,
tem medo do chá de folha de mutete,
que o povo conhece, que o mato repete.
Verde escuro, sabor profundo,
limpa o sangue, varre o mundo
interno de febres e delírios quentes,
deixando o corpo leve, contente.
E a malária, sombra antiga e feroz,
que canta o zumbido perto de nós,
não resiste à casca de quissonde amarga,
das folhas verdes esperança do amargo né,
que a avó prepara e larga
num cozido lento, horas no fogo,
até que o líquido, denso e novo,
leve ao doente força e coragem,
pondo o mosquito em outra viagem.
Mas há mais dores que a terra conhece,
e mais remédios que o mato oferece.
Para a tosse brava que o peito aperta,
o chá de eucalipto africano desperta
o ar preso nas vias cansadas,
soltando a respiração nas madrugadas.
Para feridas que teimam em fechar,
o sumo de babosa vem ajudar,
refrescando a pele, limpando o corte,
chamando a vida de volta à sorte.
O bicho-de-pé que insiste em ficar
na sola do homem que veio da lavra,
sai correndo quando o sal se mistura
com óleo de palma na cura segura.
E a gastrite, fogo no estómago ardente,
encontra na folha de maboque um presente,
que acalma o ácido, adoça a boca,
e deixa a dor fraca, quase louca.
O saber africano não é só beber,
é também rezar, soprar, benzer.
É a mão que toca o ombro febril,
o cântico baixo, o conselho subtil.
É saber que a terra fala baixinho,
e que todo remédio tem seu caminho.
As folhas se colhem com lua minguante,
pois dizem que assim são mais curantes.
As raízes se tiram ao romper da aurora,
quando o orvalho ainda chora, chora.
E ao cortar o galho, pede-se licença,
pois curar exige mais que ciência:
exige respeito, palavra e cuidado,
pois planta também sente o seu fado.
Na sombra do embondeiro, um velho sentado
conta histórias de quando foi curado.
Diz que um dia, com febre e delírio,
foi salvo por chá de mulondo e lírio.
"Meu filho", diz ele , "a planta não mente,
mas é preciso colher no dia presente,
sem pressa, sem raiva, com alma aberta,
pois a cura só entra na porta certa."
A raiz de quiabo seco é boa pro ventre,
e o pó de gergelim fortalece a gente.
O óleo de moringa limpa o sangue e o fígado,
e o chá de limão tira o frio tímido.
Cada erva é um verso, cada folha um refrão,
cantado na boca e levado na mão.
Não há bula, nem caixa colorida,
mas há histórias que salvam a vida.
Dizem que quem bebe chá de mutamba
tem o coração forte, a alma que samba;
e que a folha de ngongue no banho morno
tira do corpo a indispoção e o cansaço.
Assim, a cura africana é poema e ciência,
é fé e prova, é amor e paciência.
Não despreza o hospital nem a injeção,
mas sabe que a raiz também é solução.
Que o cajueiro dá fruto e dá pele,
que o embondeiro dá sombra e dá mel,
que a quissanje cura com som e memória,
pois música também é parte da história.
Na aldeia, ao cair da tarde,
a fumaça sobe da panela que arde.
Ali fervem folhas que o mato ofereceu,
ali cura-se o corpo e o que nele cresceu.
E quando o doente levanta sorrindo,
o povo agradece, o tambor vai batendo,
e a noite, vestida de estrelas abertas,
guarda no céu as curas secretas.
Pois África é terra que fala em verde,
que quem ouve e aprende nunca se perde.
É farmácia viva, de chão a céu,
onde Deus escreveu receita sem papel.
E no amanhecer, com o galo a cantar,
o povo sabe: a cura vai continuar.
Sofrido das Chagas
Sem comentários:
Enviar um comentário