quinta-feira, 7 de agosto de 2025

RESTÊNCIA SIMBÓLICA E REINVENÇÃO DE IDENTIDADE

 

Hoje saí de casa com brincos de búzio e tênis da Nike,
calça rasgada, camisa com rosto de Malcolm X estampado em tie-dye.
A vizinha disse: “Esse rapaz vive confuso, nem é branco nem é tradicional...”
mas ela não sabe que isso aqui é tática, é arsenal.

A resistência hoje não grita com fuzil nem cartaz,
grita com corte de cabelo, gíria, e memes voraz.
Faz-se no estilo, no passo, na forma de estar,
porque até a maneira de rir pode ser jeito de não calar.

Chamam-nos de “misturados”, de “perdidos no mundo”,
mas nós somos mapas vivos, com percursos sem fundo.
Já não usamos a palhota como morada literal,
mas carregamos a aldeia no corpo digital.

Nosso cabelo crespo é antena que capta passado e futuro,
e cada tatuagem é segredo em traço seguro.
Vestimos roupa de brechó com orgulho de guerra,
porque o que veste a alma é a memória da terra.

A avó dizia: “Não saias assim! Põe pano na cintura.”
E eu dizia: “Pano está aqui, vó — só que virou postura.”
Porque agora a luta é simbólica, camuflada, sutil,
não se faz só no grito, mas no uso do próprio perfil.

Eu uso nome africano no Facebook, mesmo que ninguém saiba pronunciar.
Assino com orgulho: M'Baku Kiala — e não estou a brincar.
É nome de sangue, não de cena,
e se tua língua tropeça, que aprenda com pena.

Falo Kimbundu no meio do português quando estou com os meus,
não é confusão, é ponte — entre os avôs e os céus.
É forma de dizer: "Ainda estamos aqui, malambas à parte,"
com telemóvel na mão e raízes na arte.

A música que ouço mistura trap com batuque,
porque ser africano hoje é fazer remix do que nos sacude.
A ancestralidade não precisa de roupa velha nem poeira,
ela entra no beat, entra na letra, dança inteira.

E na universidade, quando me pedem para “falar mais formal”,
eu puxo Frantz Fanon e meto Kalaf num discurso viral.
Porque resistir também é recusar o molde,
é forjar identidade nova sem pedir que o mundo nos molde.

A minha presença já é política, o meu corpo é arquivo,
cada gesto é resposta, cada passo, narrativo.
Quando danço no TikTok com capulana na cabeça,
não é só moda — é herança que recomeça.

Pinto grafites com símbolos bantos nos muros da cidade,
porque a parede também precisa lembrar a verdade.
E se a polícia apagar, eu volto a pintar com mais cor,
porque não há borracha que apague um tambor.

Resistência hoje é também saber rir,
fazer do meme um dicionário, do deboche um porvir.
É saber que identidade não é uniforme, é vento,
sopra conforme a memória e o momento.

Somos rebeldes de palavras, de looks, de som,
e cada escolha é política, mesmo que com tom de dom.
Não vamos caber no que nos foi desenhado —
vamos costurar com linha de fogo o nosso próprio fado.

Então, se me vês com colar de conchas e hoodie da Adidas,
entenda: sou griot do presente, e minhas rimas são feridas.
Não peço licença pra existir, nem manual de conduta:
eu sou a reinvenção do tambor que nunca se oculta.


Sofrido das Chagas 

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