quinta-feira, 3 de julho de 2025

DOUTOR SEM CARTEIRA, HEROI SEM SALÁRIO



Fizeram-nos promessas em uniforme escolar,
“Estuda, meu filho, pra um dia te formar.”
E a gente acreditou, com mochila rasgada e caderno emprestado,
mesmo sem merenda, sem luz, e quadro mal apagado.

A professora dizia: “O saber é poder.”
Mas nunca explicou o que fazer depois de aprender.
Formei-me com média 16 e orgulho da mamã,
e agora distribuo CVs no quiosque da irmã.

Chamam-me "doutor", mas o título pesa como cruz,
porque aqui ser formado não é caminho, é luz que se reduz.
Estudei pedagogia, mas hoje ensino paciência,
esperando um estágio que não peça experiência.

O Wi-Fi do bairro é partilhado por sete quarteirões,
mas uso pra procurar “como montar negócio com tostões.”
Assisto vídeos de motivação entre cortes de energia,
e leio frases de autoajuda com rima e fantasia.

Fizeram-nos jurar que educação seria salvação,
mas esqueceram de mencionar a corrupção.
Na faculdade, vi colegas a pagar por aprovação,
enquanto eu estudava à vela, com arroz de consolação.
Desempregado com diploma emoldurado,
doutor em esperar chamada que nunca foi dada.
Os políticos dizem: “Juventude é o futuro da nação,”
mas só nos lembram quando chega a eleição.

Emprego virou lenda, salário virou piada,
mas seguimos de gala pras entrevistas frustradas.
Vestimos roupa emprestada, esperança colada no peito,
sabendo que no fim o lugar já tem dono perfeito.

O tio diz: “Vai fazer biscato, larga esse orgulho.”
Mas eu olho pro diploma e quase engulo.
Não porque sou melhor que quem vende banana na esquina,
mas porque mentiram pra mim — e a mentira ainda me mina.

Juventude aqui é bicho solto entre desemprego e desilusão,
acordando cedo pra buscar futuro na placa da chamada.
O azul e branco chega lotado, a vida passa sem parar,
e a gente sonha em silêncio pra não atrapalhar.

Mas há ginga na nossa dor, revolta na nossa calma,
cada rima que escrevo é pancada na alma.
Não temos emprego, mas temos voz,
e um grito engasgado que pode explodir veloz.

Porque se não nos dão palco, subimos na mesa.
Se não nos ouvem, falamos com certeza.
Somos geração de memes, mas também de manifesto,
e um dia essa juventude sem medo muda o resto.

Enquanto isso, escrevo CV em Word pirata,
e rezo pra que alguém veja além da gravata.
Doutor sem carteira, herói sem salário,
mas com coração pulsando como batuque revolucionário.


Sofrido das Chagas 

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