quinta-feira, 7 de agosto de 2025

SER AFRICANO EM TEMPOS DE GLOBALIZAÇÃO

 

Hoje acordei com sotaque britânico e saudades do funge.
De um lado, Spotify com Burna Boy; do outro, mamã gritando:
“Vai buscar água, já não és branco!”

É estranho, sabes? Ser africano hoje é ter passaporte emocional:
viver na Angola do corpo e na Califórnia da cabeça.
É usar dashiki com Air Jordan,
ler Chimamanda no TikTok,
e terminar o dia a ver Kuduristas dançar sobre beats do Canadá.

Sou angolano, sim.
Mas também sou login, senha, código de país,
avatar sorridente com filtro de Paris.
Falo Kimbundu com gíria do WhatsApp,
misturo semba com trap e peço permissão ao Google pra dizer quem sou.

Antigamente, identidade era simples: nome, clã, região.
Agora é bio do Instagram com bandeira, hashtag e humor ligeiro.
“Orgulho africano” – escrevemos com fonte itálica,
enquanto tentamos ser aceites num mundo que só nos quer como estética exótica.

Ser africano hoje é ter ancestralidade em conflito com algoritmo,
é tentar preservar o tambor enquanto o teclado dita o ritmo.
É ser lido como “autêntico” se dançar nu,
mas ser “imitador” se lê Nietzsche com sotaque de Lu.

Somos julgados se somos “muito modernos”,
mas esquecem que o barro também vira tela de cinema.
Que tradição não é prisão, é escolha diária —
e ser africano não é estar parado no tempo da palhota imaginária.

O global diz: “Adapta-te ou morre.”
Mas nunca nos perguntaram se queríamos esse molde.
Na aldeia, o velho dizia: “O mundo vem aí.”
Chegou pela Net, pela Netflix, pelo não-dormir.

Hoje, o miúdo do Sambila ouve trap e escreve em inglês,
mas ainda dança dikanza nas festas, mesmo que ao revés.
Ser africano em tempos de globalização
é caminhar num mapa feito de espelhos partidos —
onde cada reflexo é um pedaço do que somos,
mas nenhum deles é inteiro.

E o pior: todos querem dizer o que é ser africano.
Uns dizem: “És africano se sofres.”
Outros: “Se usas pano.”
E ainda tem quem ache que o mais africano é o que rejeita o mundo —
mas esquecem que o mundo sempre passou por nós:
com caravanas, navios, e agora hashtags.

A globalização não nos engoliu —
nós mastigamos ela com dendém.
Transformamos o jeans em samacaca e capulana,
o inglês em gíria, o tédio em semba.

E se hoje somos híbridos, ambíguos, misturados,
não é por fraqueza — é por sobrevivência.
Ser africano é essa arte antiga de fazer da confusão uma dança.

Então sim, danço semba com hoodie da Nike.
Leio Mbembe no telemóvel.
Oro aos antepassados pelo Google Translate,
e ainda assim, me sinto inteiro.

Não porque me explicaram o que sou —
mas porque decidi ser o que me disseram que não podia.

Sou africano, sim.
Mesmo se uso emojis para chorar
e memes para resistir.
Mesmo se tenho Wi-Fi no quintal
e ancestralidade no chip.

Sou África com cabo de fibra e tambor com plug-in.
Ser africano hoje não é resistir ao mundo,
é fazer do mundo uma versão com batuque no fim.


Sofrido das Chagas 

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