quinta-feira, 7 de agosto de 2025

CORRESPONDÊNCIAS MENTIROSSAS AOS QUE FICAM

 

Querida Tia Mena,
escrevo-te de França, onde a torre é tão alta como a saudade que me pesa no peito.
Mas não te preocupes, estou bem. Comi baguete hoje. Só não disse que foi do lixo,
mas o que importa é que a fome aqui tem nome chique: intermitente jejum.

A cidade é linda. As ruas cheiram a perfume e pressa.
As pessoas andam rápido, como se corressem de si mesmas.
Aqui ninguém pergunta se estás bem — e se perguntas, acham que queres roubar.

O frio é elegante, como disseste.
Só que os casacos são caros, e o aquecedor é luxo.
Mas tudo bem, arranjei uma solução: durmo com três calças e rezo em kimbundu.

Tio Zeca perguntou pelo trabalho, né?
Diz a ele que agora sou “operador logístico num armazém europeu.”
Só não diz que é empilhar caixas até a coluna pedir reforma antes do visto chegar.

Mandei um telemóvel velho pro primo Tó —
pra manter o teatro, né?
Porque se mando a verdade, ninguém quer partilhar no grupo da família.

Diz à avó que os euros estão a caminho.
Diz isso com força, pra ela aguentar a fila no hospital.
Não diz que aqui ganho por hora e pago por segundo.
Que a renda me come antes do prato.
Que vivo num quarto onde o eco conversa comigo e responde “coragem”.

Mas deixa estar.
Aqui tudo é luz — só não dizem que é paga à parte.
Aqui tudo é futuro — desde que tenhas passado europeu.
Aqui tudo é civilizado — até te verem negro a entrar na loja.

Mas sou forte, Tia Mena.
Sorrio nas fotos, envio emojis, até brinco:
“Europa é boa, só falta África cá dentro.”
E os que ficaram acreditam. Porque também querem fugir.
Porque ninguém quer ser o último no país que afunda sem nau.

Diz ao Matias que o diploma dele serve cá para limpar chão com mais classe.
Diz ao Domingos que o Uber que ele vê no meu perfil não é meu,
sou eu que o conduzo — e o dono é um gajo chamado Ivan, que nunca sorri.

E diz à vizinhança que sim, sou bem-sucedido.
Tenho três turnos, duas hérnias, e um salário que dura sete dias.
Mas em cada mentira que envio, há uma verdade que morre.
E isso, Tia, nem a alfândega detecta.

Talvez um dia volte —
não com plasma, nem roupa da Zara,
mas com a alma limpa, sem filtro, nem fachada.

Porque migrar é verbo difícil: conjuga-se com dor,
acorda-se com medo e sonha-se com amor.

Mas ninguém diz isso nas cartas, pois não?
Só escrevemos que estamos bem, que tudo é lindo,
e colamos uma selfie com cara de quem venceu,
quando na verdade, só sobrevivemos.

Com saudades e fome de casa,
do teu sobrinho que é rei na internet
e servo na realidade:
Joel Mbuta – Exilado Voluntário


sofrido das Chagas 

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