quinta-feira, 7 de agosto de 2025

CHAMARAM-ME FERNANDO, MAS NASCI NDONGALA

Chamaram-me Fernando porque “soa bem no BI e CV”,
mas nasci Ndongala, com nome de rei sem trono.
No registo, cortaram minhas consoantes com tesoura de colono,
e disseram à minha mãe: “Assim será mais fácil no mundo moderno.”

Fernando soa europeu, neutro, contratável,
mas Ndongala carregava histórias de um povo inquebrável.
Só que no formulário da escola,
Ndongala parecia palavrão, Fernando era cola.

Na infância, dizia: “Chama-me Nando”, meio caminho,
pra não ouvir piadas na chamada do colégio vizinho.
Porque quando diziam “Ndongala”,
vinha sempre alguém a gritar: “É feitiço ou bala?”

Mas o nome é tambor, não é senha pra dúvida,
não é convite pra escárnio nem arma de polícia estúpida.
É bússola, búzio, batismo do chão.
Mas aqui fora pesa como crime sem perdão.

No shopping chamaram-me "exótico",
um rótulo enfeitado que disfarça o problemático.
Porque o meu tom de pele não é bronzeado fashion,
é marrom-ancestral, fora do padrão da paixão.

Ser preto em tempo de algoritmo é dilema por segundo:
ou és "lindo tipo chocolate" ou "ameaça pro mundo".
A cor que herdei de Nzinga e dos quilombos em fuga,
aqui é código de alerta em esquina madruga.

Fernando é o nome que me cabe nas reuniões,
Ndongala é o nome que canta nas minhas orações.
Fernando é quem eles contratam com cuidado,
Ndongala é quem eles olham de lado.

E quando viajo, passo na alfândega com cara de neutro,
a rezar pra não pedir explicação com cheiro de insulto.
A minha pele fala antes que a minha boca diga “bom dia”,
e às vezes basta ela pra a rua virar vigia.

Um dia, tentei reverter: no email profissional,
assinei “Ndongala M.” — deu-se logo um vendaval.
“Tem certeza que quer manter esse nome?”,
perguntou o chefe, como quem arranca sobrenome.

Mas eu cansei de caber no que me apertava,
de cortar sílabas como quem corta esperança escravizada.
Recuperei meu nome, pus acento, pus som,
e disse: “Se não me lês, não mereces meu dom.”

Hoje assino Ndongala com orgulho africano,
mesmo que a entrevista comece com engano.
Mesmo que tenha de soletrar cada letra,
prefiro um não com verdade do que um sim na treta.

E minha pele? Essa não clareia nem com sol do inverno,
é mapa de batalha, de amor fraterno.
É ruga da avó que sobreviveu à seca,
é brilho de carvão que não se apaga com seca.

Chamaram-me Fernando, mas eu sou Ndongala inteiro.
Sou nome, sou negrume, sou batuque verdadeiro.
E quem não consegue pronunciar sem tropeçar,
não está pronto pra me contratar, nem pra me amar.


Sofrido das Chagas 

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