Chamava-se Joel, mas no Instagram era @AfroKingGlobal,
perfil cheio de filtros, um feed quase imortal.
Na bio lia-se: “De Luanda para o mundo – hustle é a lei.”
Mas o mundo dele era um quarto, e o hustle, um buffet sem bandeja.
Saiu de casa com festa e despedida de bairro,
o mano que vai “lá fora” é tratado como atalho.
“Quando chegares, manda telemóvel e Nike Air,”
e ele, com lágrima presa, dizia: “Com fé, com fé.”
Aterrissou em Madrid com dois contactos e esperança,
só descobriu que esperança não paga a mudança.
A casa era partilhada com cinco e um rato,
o quarto era meio metro, sem espaço para sapato.
Mas as redes? Ah, nas redes era rei!
Fotos sorrindo no metro, de propósito no display.
Caption com emojis, hashtags do tipo #Vibes,
ninguém via que jantava pão seco há três lives.
Trabalhava na construção, sem contrato, só suor,
dormia pouco, tossia muito — “mas lá em África é pior.”
O patrão gritava: “Rápido, preto! Isso é Europa, rapaz!”
E ele engolia seco: “Só mais um mês e tudo fica em paz.”
Mandava fotos da neve para a tia no Benfica,
mas não dizia que a jaqueta era emprestada de uma chica.
Os pais exibiam no bairro: “Nosso filho está lá!”
sem saber que o Joel tinha medo até de tossir sem o SEF escutar.
A vizinhança dizia: “Tá rico, vê só a pose!”
mas o Joel colecionava negativas de visto e alguma cirrose.
Porque à noite bebia para esquecer a ilusão,
de que lá fora era glória, e aqui dentro prisão.
Um dia postou foto em frente à Zara com saco,
mas dentro só tinha o talão — devolveu tudo por estapaco.
Tirou selfie com um Audi que nem era dele,
e na legenda: “Grato a Deus por tudo, fiel é Ele.”
Até que cansou.
Do teatro, da farsa, da máscara ocidental.
Aos poucos apagou os stories, silenciou o canal.
Desinstalou o filtro, desligou o wifi —
decidiu ser real, mesmo que doa mais do que o ai.
Fez vídeo sincero, sem fundo musical:
“Não há glória fora se a tua dor é o capital.
Ser migrante é tentar, cair e repetir,
mas se é só para fingir, prefiro não partir.”
Falou da solidão, do racismo e do engano,
do trabalho invisível que esmaga o urbano.
E viralizou. Mil partilhas em uma noite só,
seguidores a dizer: “Finalmente, alguém mostrou o pó!”
Hoje Joel dá palestras sobre migração honesta,
conta a verdade com humor — e essa é sua festa.
Tem canal chamado “Saí, mas nem tudo saiu de mim”,
e a cada crônica nova, diz: “Fugir não faz o fim.”
Porque o mito do sucesso é só isso: um mito,
vendido em dólar, comprado a grito.
Mas a dignidade é silêncio, é chão limpo, é suor,
e nem toda Europa é Paris, nem todo sonho é melhor.
Joel não voltou (ainda), mas também não fugiu mais,
decidiu morar na verdade — mesmo que doa demais.
E quando perguntam: “Valeu a pena a decisão?”
ele responde: “A pena foi não saber da prisão.”
Sofrido das Chagas
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