quinta-feira, 7 de agosto de 2025

XENOFOBIA, DISCRIMINAÇÃO E SOBREVIVÊNCIA NA DIÁSPORA

Em Lisboa, no Martim Moniz, vive a Marlene do Kikolo,

pele retinta, passo firme, sotaque misturado no colo.
Veio de Luanda com a prima, num voo da TAAG apertado,
com mil sonhos na mala e o coração encorajado.

Tinha ouvido histórias de Europa nas tardes de telenovela,
onde até pobre tem casa com água e janela.
Chegou no inverno com casaco emprestado,
e o frio entrou logo onde o visto tinha falhado.

“És de onde?” — perguntavam na pastelaria da esquina.
“De África,” dizia ela. “Ah... então és da Guiné ou da China?”
Não sabiam de Angola, nem do Bairro Prenda, nem do Kimbundu,
mas sabiam apontar quando ela falava num tom profundo.

Procurou emprego com currículo honesto,
mas a resposta era sempre o velho protesto:
“Não temos vaga no momento, mas vamos guardar...”
e no dia seguinte, a amiga loira já estava a começar.

Foi babá, faxineira, ajudante de cozinha,
e sempre ouvia: “Tens documentos?” — em tom de armadilha.
Mostrava o passaporte, a autorização e o NIF,
mas o que eles queriam era um “jeitinho” mais flexível e stiff.

Na repartição, tratavam-na como suspeita,
no supermercado, seguranças sempre na espreita.
E no autocarro? Ah, ali era espetáculo diário:
“Esses pretos vêm tirar nosso salário!”

Marlene, com paciência herdada das tias do Sambizanga,
respondia com olhar de quem aprendeu a dançar com manga.
Mas por dentro doía — não a palavra, nem o gesto bruto,
mas a certeza de que ali valia menos que o luto.

Um dia, uma senhora no bairro disse em bom som:
“Volta pra tua terra! Aqui não há espaço, nem pão!”
Marlene sorriu, não por humor, mas por defesa,
e respondeu com ironia, quebrando a tristeza:

“Minha terra? Está na tua geladeira: banana, óleo de palma,
o café que tomas, o ouro no teu colar que acalma.
Eu vim com o sol, com a língua e com saber,
e não foi para te servir, mas para viver.”

Na igreja, tentou consolo, mas encontrou fronteira santa:
“Não cantas como nós, e tua roupa é meio espanta.”
Na escola do filho, ouviu o mesmo discurso:
“Ele é agitado... talvez problema de impulso.”

Mas o pequeno Lito só queria brincar,
sem ser chamado de “macaco” no recreio do lugar.
Marlene chorou escondida, mas no dia seguinte,
ensinou ao filho: “Tens sangue de rei, anda erguido, em frente.”

E foi assim que ela sobreviveu: com gingado e oração,
fazendo da solidão uma nova profissão.
Hoje tem um canal chamado “Pretos com Agenda”,
onde denuncia racismo com humor, e não se emenda.

Entrevista migrantes, dá dicas de aluguel,
ensina a responder ao “tens BI?” com papel e pincel.
E no fim de cada vídeo, com seu sorriso de guerra,
ela diz: “Aqui também é minha terra.”

Porque na diáspora a fronteira é móvel, é disfarçada,
não está na alfândega — está na calçada.
Está no “fala melhor”, no “és diferente”,
está no olhar que interroga sem ser inocente.

Marlene aprendeu que viver fora é rebelião,
é não pedir licença, é ser sua própria nação.
E quando perguntam “não tens medo de estar aqui?”,
ela responde: “Medo? Eu sobrevivi ao INSS de lá e ao SEF daqui!”


Sofrido das chagas 

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