quinta-feira, 7 de agosto de 2025

CONFLITO ENTRE RAÍZES CULTURAIS E PRESSÕES EXTERNAS

 

Meu avô fala com árvores e consulta o vento,
ouve as pedras, interpreta o movimento.
Diz que o mundo tem alma e que cada som é segredo —
mas eu falo com o Google e o TikTok é meu rochedo.

Avô chama-se Lúcio, mas chamam-no de “velho feiticeiro”,
vive no musseque, sem pressa nem espelho no banheiro.
Diz que a terra tem nome, que o milho tem oração,
e que o corpo adoece quando esquece a canção.

Eu chamo-me Kevin, tenho MBA e CV em inglês,
sigo influencers que me ensinam a ter altivez.
Faço meditação no YouTube, networking no LinkedIn,
mas quando piso na aldeia, me sinto meio chaplin.

Avô diz: “Descalça o pé, sente o chão a falar.”
Eu digo: “Avô, não se pode viver sem wi-fi, sem cobrar.”
Ele sorri, paciência do tempo no rosto marcado:
“Neto, só se perde o rumo quando se esquece do passado.”

Na cidade, se rezo aos antepassados, chamam-me retrógrado.
Se danço semba com coração, dizem: “Tá fora do código.”
Mas se falo inglês com sotaque importado,
me olham como se fosse o milagre esperado.

Ser africano hoje é viver no entremeio:
um pé no batuque, outro no Facebook alheio.
É querer manter o nome do clã na assinatura,
mas a empresa pede abreviação pra evitar “censura”.

No escritório, riem quando conto que minha avó cura com raízes,
mas pagam fortunas a gurus brancos por dicas felizes.
Chamam o ancestral de “crendice ultrapassada”,
mas acendem incenso no co-working com fé envernizada.

Avô me chama: “Kevin, vem aprender o batuque da caça.”
E eu digo: “Já volto, estou em reunião de massa.”
Mas por dentro, algo grita, algo quebra a performance,
um tambor toca em silêncio, me puxa com importância.

À noite, sonho com as palavras do velho:
“O que não dança com o tempo, morre em espelho.”
E acordo confuso: serei tradição traída?
Ou modernidade sem raiz, sem guarida?

No fim de semana, visitei o avô com camisa colada,
e ele, com seu pano manchado, me deu a palavra sagrada:
“Neto, modernidade não é rejeitar o que te moldou,
é escolher o que te leva, sem esquecer de onde brotou.”

E aí percebi: não preciso escolher um lado.
Posso dançar semba com fones no ouvido,
posso vestir fatos com congo no espírito,
posso ser Kevin com alma de Ndulo, não é proibido.

Hoje, escrevo códigos no computador
e batuco com avô ao fim do labor.
Sou ponte, sou encruzilhada, sou síntese rebelde,
e cada passo que dou, o tambor ainda me mede.

Porque tradição não é prisão — é raiz.
E a modernidade não precisa ser cicatriz.
Basta que o teclado escute o tambor,
e que o tambor aceite que o futuro tem motor.


Sofrido das Chagas 

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