No beco da Mulemba, onde o barro vira calçada,
vive o Toni Clandestino, lenda não documentada.
Dizem que nasceu em Luanda, mas nem ele sabe ao certo —
se é cidadão ou sombra num sistema sempre coberto.
Toni é guia, despachante, filósofo informal,
desses que sabem tudo sobre sair do país sem passar pelo portal.
“Queres chegar na Europa? Tenho contacto no Bungo,
com cem mil e tua fé, passas até por luxemburguês do Congo.”
Era miúdo quando viu o pai tentar Portugal,
com mala de cartão e esperança sem igual.
Mas voltou só a roupa — ele, nunca mais.
“Viram-no em Lisboa, depois sumiu nos cais.”
Desde então, Toni cresceu entre histórias e rotas,
entre vistos negados e promessas que são cotas.
Tornou-se especialista em papel que não é papel,
vende certidão de nascimento que até engana o céu.
“Tudo se compra,” — diz ele, sorrindo torto —
“a dignidade é que às vezes chega morta no aeroporto.”
Mostra documentos com carimbo de embaixada,
que cheiram a toner e a tinta apressada.
Mas Toni não é vilão, nem herói, nem traidor,
é só reflexo de um sistema que exporta dor.
“Meu país é rico,” — diz com ironia na mão —
“mas aqui pobre que sonha vira criminoso ou bufão.”
O negócio dele é sonho comprimido,
passaporte de plástico com destino fingido.
“Queres ser estudante? Tenho matrícula em Cuba.
Queres ser refugiado? Arranjo guerra no mapa e desculpa.”
E os clientes vêm: mães, tios, miúdos da Zunga,
todos cansados do país que os empurra.
Cada um com uma história de fuga e de fé,
uns querem lavar prato, outros dançar em café.
Mas nem todos chegam.
Alguns ficam no Saara, viram areia com nome.
Outros param em Ceuta, com frio e sem fome.
Toni recebe mensagens: “cheguei” ou “morreram dois”.
Responde com emoji, apaga, e segue veloz.
Porque o passaporte do desespero não tem emblema,
não tem chip, nem segurança — só dilema.
É feito de medo, pressa e cansaço,
e carimbado com silêncio no espaço.
Um dia, um jovem chamado Alfredo,
chegou a Toni com os olhos cheios de enredo.
“Quero ir pra Alemanha, estudar engenharia,”
mas não sabia nem dizer “bom dia”.
Toni perguntou: “Sabes o que há lá fora?”
“Frio, racismo e uma vida que devora.
Lá ninguém vai a mesa do funge da avó,
lá ninguém entende quando se diz ‘me dá só’.’”
Mas Alfredo insistiu: “Prefiro sofrer lá,
do que aqui envelhecer sem nunca tentar.”
Então Toni suspirou e abriu seu ficheiro,
tirou um documento, falsificou o roteiro.
Mas algo mexeu com ele naquela noite,
não foi polícia nem medo — foi um açoite.
Olhou seu rosto no espelho do quarto,
e viu um homem que traficava sonho farto.
No dia seguinte, fechou a “agência” sem aviso,
doou os papéis, queimou os de compromisso.
Foi ao mercado e montou uma bancada nova:
“Consultas para ficar – Projeto Povo.”
Hoje ajuda jovens a escrever currículo real,
a traduzir diplomas e escapar da ilegalidade.
Não parou de sonhar, mas trocou a moeda,
porque viu que até a fuga pode ser queda.
E se ainda vendem esperança em documento fajuto,
Toni ensina: “Sonho que não se planta dá fruto de luto.”
Por isso, ele termina cada sessão com o aviso:
“A fronteira maior é querer sair sem ter juízo.”
Sofrido das Chagas
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