quinta-feira, 7 de agosto de 2025

AUSTERIDADE: UM CASTIGO SOCIAL

 Em Angola, a austeridade nunca chegou como plano, chegou como sentença. Foi decretada do alto, com palavras bonitas e gráficos em PowerPoint, mas sentida em baixo, nos ossos de quem carrega o país às costas. Não foi anunciada como escolha difícil de uma nação em crise, mas imposta como castigo coletivo a um povo que ousou acreditar que o sofrimento era temporário.

No discurso oficial, a austeridade é uma necessidade. Na prática, é um castigo social. Castiga a zungueira que tem de caminhar três bairros para comprar uma caixa de tomate mais barata. Castiga o enfermeiro que não tem luvas, o professor que ensina sem giz, o pai que não pode dar lanche ao filho. Castiga o reformado que espera na fila da segurança social, suando e tremendo, para receber um valor que não compra nem dignidade.

“Temos de conter os gastos públicos”, dizem os senhores engravatados. E então cortam nas escolas, cortam nos hospitais, cortam no transporte subsidiado, cortam na merenda escolar. Mas não cortam nos carros de luxo. Não cortam nos jantares protocolares. Não cortam nas viagens inúteis nem nos subsídios obscenos. A tesoura da austeridade tem mira seletiva: só corta onde o povo geme.

Os manuais de economia falam da austeridade como medida técnica, racional, científica. Mas, em Angola, a técnica virou tapa-buraco de más decisões políticas. É o povo a pagar pelos roubos dos outros. Pelos desvios. Pelas isenções fiscais dadas aos amigos. Pelas obras inacabadas. Pelas parcerias mal pensadas. Pelos megaprojetos fantasmas que sugaram o Orçamento e deixaram só dívidas e terra batida.

A austeridade, neste país, vem sempre acompanhada de cinismo. Dizem que é um "ajustamento necessário", mas esquecem de ajustar os salários, o custo da vida, a esperança. Falam de reformas, mas a única coisa que reformam com eficiência é o discurso: trocam promessas por justificações, compromissos por desculpas.

E o povo? O povo foi ficando conformado. Habituou-se a ver o preço do pão subir enquanto o salário estagna. Habituou-se a não adoecer porque não há hospital que o salve. Habituou-se a desistir da universidade porque as propinas superam os sonhos. Habituou-se a ver tudo fechar, menos os bolsos dos dirigentes.

A juventude, essa, é quem mais sente. Cresceu a ouvir promessas de modernização, inovação, diversificação da economia. Mas na prática, tudo que se diversificou foi a maneira de frustrá-los. Agora são incentivados a “empreender”, o novo verbo da moda. Mas como se empreende sem crédito, sem segurança, sem apoio, sem formação, sem energia elétrica constante? Empreende-se na dor, no improviso, na luta diária para não cair no abismo da informalidade total.

Nas comunidades rurais, a austeridade é ainda mais brutal. Lá, ela significa escolas sem professores, centros de saúde sem medicamentos, estradas que viram rios na chuva. Significa jovens que abandonam o campo porque não há futuro, e crianças que crescem sem saber o que é internet, mas já sabem o que é fome.

Mas enquanto a austeridade castiga a maioria, há uma minoria imune. Os protegidos do sistema, os gestores milionários, os altos quadros, os assessores de luxo, os amigos do regime — esses vivem num país paralelo. Um país de ar-condicionado, conferências, cartões dourados e segurança armada. Onde a palavra “crise” é usada em tom de palestra, não de desespero.

Nas redes sociais, o governo publica imagens de inaugurações de hospitais que não funcionam, de escolas sem professores, de projetos que só existem para a fotografia. Tudo isso com legendas motivacionais e hashtags patrióticas. Mas no chão da realidade, a mãe angolana ainda dá chá de folhas para baixar a febre da criança, porque o paracetamol acabou no posto médico.

A imprensa oficial continua a repetir que a austeridade é temporária, que tudo vai melhorar, que estamos no caminho certo. Mas ninguém diz quanto tempo mais o povo deve aguentar. O tempo da fome é diferente do tempo da estatística. E a paciência tem prazo de validade.

Angola não precisava de austeridade. Precisava de justiça. Justiça fiscal. Justiça distributiva. Justiça no acesso aos serviços. Precisava de coragem para cortar onde dói — no luxo, no desperdício, na corrupção — e não nos que já não têm de onde cortar. A verdadeira austeridade deveria começar por cima, não por baixo.

Mas em Angola, virou normal punir quem trabalha. Virou aceitável pagar salários de miséria. Virou rotina ver o povo a carregar bidões de água enquanto o governante discursa sobre os avanços no setor hídrico. Virou tradição prometer energia elétrica a todos, quando nem o hospital tem gerador para manter um bebé vivo numa incubadora.

E assim seguimos: com austeridade como castigo social, com miséria justificada por fórmulas importadas, com sofrimento traduzido em relatórios e silêncio. Mas há um limite. A fome também cansa. A humilhação, quando institucionalizada, não gera só resignação — gera revolta, ainda que lenta, ainda que contida.

Um dia, talvez, o povo se canse de ser punido por crimes que não cometeu. Um dia, talvez, a austeridade seja devolvida a quem a merecia: aos que roubaram, aos que falharam, aos que governaram como se o país fosse feudo pessoal. Um dia, talvez, a justiça vença a técnica.


                                                                                             Sofrido das Chagas 

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