O salário mínimo em Angola não é salário. E muito menos mínimo. É uma piada de mau gosto, contada num país onde já se perdeu a vontade de rir. A cada início de mês, milhares de trabalhadores públicos olham para os recibos de vencimento com a mesma expressão de quem leva um estalo depois de pedir ajuda. Aquilo que lhes é pago em nome do “mínimo” não alimenta, não transporta, não educa e, sobretudo, não dignifica. É apenas um insulto legalizado — um insulto com carimbo do Estado.
Chamam-lhe “mínimo nacional”, mas é na verdade um limite de resistência humana. Porque quem sobrevive com 32 mil kwanzas mensais (valor praticado durante muito tempo) ou com 70 mil kwanzas nas últimas atualizações, não vive — apenas resiste. E o mais cruel é que o próprio Estado, que deveria proteger o trabalhador, transformou essa humilhação em norma. Assinada, publicada em Diário da República, e defendida em conferências com linguagem técnica e cara de pau.
Os ministros falam em “sustentabilidade orçamental”, “compromissos com as finanças públicas” e “necessidade de equilíbrio macroeconómico”. Mas não têm coragem de dizer a verdade: o Estado angolano paga mal porque não respeita quem trabalha. E não respeita porque quem toma as decisões não vive com salário mínimo. Vive com subsídios obscenos, carros protocolados, cartões de combustível, ajudas de custo e, por vezes, uma imunidade moral que os impede de ver a miséria.
Nos corredores dos ministérios, circulam decisões feitas por pessoas que nunca precisaram comprar pão com trocos contados. Dizem que o país está em crise, mas a crise nunca chega às zonas VIP. Austeridade, em Angola, é para quem limpa, ensina, zunga, carrega blocos e enterra cadáveres no hospital sem morgue. A elite continua a brindar com champanhe francês enquanto o povo ferve ossos para fazer sopa.
“Estamos comprometidos com a valorização do capital humano”, dizem. Mas a prática mostra o oposto: o trabalhador angolano é desvalorizado, descartado, ignorado. A professora que leciona com o estômago vazio é tratada como estatística. O enfermeiro que caminha quatro quilómetros a pé para o posto de saúde é um dado num PowerPoint. A empregada da limpeza do ministério — que ganha o mesmo “mínimo” que mal cobre o custo das suas próprias deslocações — é uma sombra nos corredores.
E o mais triste é que isso já foi normalizado. O insulto foi institucionalizado. Ninguém no poder se envergonha mais de pagar miséria. Pelo contrário: quando há protestos, respondem com justificações arrogantes, planilhas coloridas e comparações absurdas com países em guerra. “Vejam a RDC, vejam o Sudão do Sul”, dizem — como se a régua da dignidade humana devesse ser traçada pelo caos alheio.
Enquanto isso, a inflação galopa. O saco de arroz triplica de preço. A lata de óleo vira artigo de luxo. A cesta básica é um conceito utópico, digno de contos de fadas. Mas o salário mínimo continua estagnado, empurrado com uma ligeira correção sempre que a pressão social ameaça transbordar. E mesmo essas correções são vendidas como vitória política. “Aumentámos o salário mínimo em 25%!” — como se tivessem feito um favor, como se 25% de nada fosse alguma coisa.
O povo assiste a tudo com a paciência dos vencidos. Já não grita tanto, porque já gritou demais e ninguém ouviu. Alguns ainda marcham, outros escrevem nas redes, e muitos simplesmente baixam a cabeça e continuam — por necessidade, por medo, por cansaço. O país transformou-se numa grande fábrica de sobreviventes silenciosos.
O salário mínimo é, hoje, o reflexo daquilo que Angola se recusa a admitir: que o país é governado com frieza técnica e distância emocional. Que as decisões são tomadas sem ouvir quem varre as ruas, quem trata doentes, quem ensina crianças, quem empacota mercadoria, quem entrega cartas e limpa casas. Que a riqueza nacional serve para encher os bolsos dos que mandam e empobrecer ainda mais os que obedecem.
E não é que o país não tenha recursos. Angola tem petróleo, diamantes, terras férteis, jovens talentosos. Mas tudo isso está trancado por um sistema que não redistribui: concentra. O Estado cobra impostos aos pobres, mas perdoa dívidas aos ricos. Gasta milhões em propaganda, mas não tem verba para aumentar salários com dignidade. Constrói estádios e palácios, mas abandona escolas e hospitais. E depois ainda exige patriotismo do povo que vive humilhado.
A Constituição fala de dignidade. Os discursos falam de justiça social. Mas o recibo de salário fala mais alto: ele diz, sem cerimónia, que o trabalhador angolano não vale nada para quem governa. Que o seu suor não tem preço, ou pior, tem um preço tão baixo que se torna um escárnio. Que trabalhar em Angola, em muitos casos, é uma forma lenta de morrer.
E mesmo assim, há quem continue. Acordam às cinco da manhã. Caminham quilómetros. Trabalham oito, dez, doze horas por dia. Suportam atrasos salariais. Aguentam chefes arrogantes. Educam filhos com dignidade apesar de tudo. São eles os verdadeiros heróis deste país. Mas heróis anónimos, silenciosos, invisíveis ao olhar do poder.
Talvez um dia o salário mínimo deixe de ser uma piada e passe a ser um pacto de respeito. Talvez um dia se entenda que um país se mede não pela opulência dos seus palácios, mas pelo valor que dá aos seus trabalhadores. Talvez. Mas por enquanto, o salário mínimo continua a ser o que sempre foi: um insulto institucionalizado — com fatura passada e carimbo oficial.
Sofrido das Chagas