Acordei hoje com o estômago a protestar, não por greve, mas por ausência de função. As tripas tocavam batuques, não de festa, mas de fome. Abri a torneira — não saiu nada. Só o barulho oco do encanamento lembrava que, um dia, houve água. O balde ao canto da casa, sujo de ferrugem e mosquitos, parecia zombar: “É hoje que voltas à cacimba, irmão.”
O bairro está igual: buracos que engolem carros, esgotos que passeiam como rios sem dono, e crianças que deveriam estar na escola mas carregam bidões ou catam cobre no lixo. A escola? Um edifício que já foi pintado há uns anos, mas agora perdeu a cor e o conteúdo. Faltam professores, falta giz, faltam mesas, faltam cadernos. Mas sobra a promessa — aquela que os políticos repetem como ladainha, com a boca cheia de palavras e os bolsos mais cheios ainda.
Angola vive o paradoxo do petróleo: vendemos ouro negro, mas morremos de fome. Exportamos riqueza, mas importamos miséria. E quando o povo reclama — com razão e dor —, vem o governo dizer que o problema é o subsídio ao gasóleo. Que é preciso ajustar, cortar, reequilibrar. Que estamos todos no mesmo barco. O mesmo barco onde uns têm iate e outros nem colete salva-vidas.
A verdade é que o subsídio da desgraça não é o que se retira ao combustível. É o que se injeta todos os dias na alma do povo: subsídio à ignorância, à fome, à doença, ao desemprego. É o que se paga com o sofrimento de quem nasceu pobre e continua pobre, sem ver saída, sem ver luz, sem ver justiça.
O preço do gasóleo subiu como foguete. E com ele, tudo mais: o pão, o táxi, o saco de arroz, o quilo de peixe seco, a bacia de tomate. A inflação é uma besta que devora salários mínimos e engorda os cifrões dos que controlam a máquina. A zungueira grita mais alto, mas vende menos. O mototaxista arrisca mais, mas lucra menos. O camponês planta mais, mas come menos. E o cidadão comum? Esse sobrevive, à base de criatividade, fé e desespero.
Enquanto isso, o Parlamento parece um teatro. Deputados dormem nas sessões, quando não discutem entre si por microfones e ego. A oposição grita, o partido no poder abana a cabeça, o povo escuta e continua a pagar a conta — sem poder desligar o contador.
O desemprego é o maior empregador do país. Jovens com diplomas vendem recarga, vendem pão, vendem esperança. Universitários viram ambulantes. Professores tornam-se taxistas. Médicos abandonam o hospital para emigrar ou abrir clínicas improvisadas. As ruas tornaram-se escritórios, e os contentores, salas de aula. Quem quer trabalhar, trabalha... mas não é pago. E quem é pago, não recebe o suficiente para viver — apenas para sobreviver.
E por falar em sobrevivência, o sistema de saúde é uma lotaria macabra. Há hospitais sem remédio, sem seringas, sem ambulância. Pacientes morrem por falta de compressa, morrem por infeções simples, morrem por ausência de médicos que emigraram em busca de dignidade. A mortalidade infantil é uma estatística que sangra. As mães rezam mais do que recebem cuidados. Os pobres curam-se com chá, fé e improviso. E os ricos? Esses vão à África do Sul, Portugal, Dubai ou qualquer país onde a saúde não seja uma sentença de morte.
A educação, essa, é a base que o governo repete como mantra, mas pisa como tapete. As escolas públicas estão abandonadas. Professores mal pagos ensinam com paixão e sacrifício, mas sem meios. Livros didáticos chegam com erros, anos depois. O conteúdo é antiquado. A internet, um luxo inalcançável para milhões. O futuro da nação estuda sentado no chão, com fome, com sapatos rotos, com olhos cansados. Como vão competir num mundo global, se mal sabem o que se passa fora da comuna?
E no meio disso tudo, os líderes dizem que o povo tem de compreender os “ajustes”. Que é necessário “sacrificar hoje para colher amanhã”. Mas o amanhã nunca chega. Só o sacrifício é permanente. O povo compreende, sim. Compreende que o sacrifício nunca é partilhado por todos. Compreende que os filhos dos ministros estudam no estrangeiro, comem bem e não apanham fila no hospital. Compreende que os milhões desviados em esquemas e sobrefaturações dariam para subsidiar não só o combustível, mas também a saúde, a educação e a dignidade nacional.
Já não basta a pobreza extrema, agora temos também a extrema indiferença. Uma elite política cada vez mais distante da realidade. Que circula em jipes blindados, escoltados, com vidros fumados para não verem a lama e a miséria das ruas. Que falam de reformas sem saber o preço do pão, da água ou do transporte. Que sorriem em conferências, mas ignoram o clamor das periferias.
Nas redes sociais, surgem vídeos de jovens a protestar. Uns fazem poesia, outros música, outros dançam com dor. São vozes que recusam ser silenciadas, ainda que o sistema tente calar. São gritos de uma geração que não quer ser mártir, mas protagonista. Que sabe que a verdadeira independência ainda não chegou, porque continua escrava do medo, da fome e da mentira.
Sim, o subsídio da desgraça continua. E não é apenas económico, é moral. É o subsídio que alimenta a corrupção, o nepotismo, o clientelismo, a propaganda e a impunidade. É o combustível invisível que move o sistema, que tranca portas, que adia sonhos.
Mas há uma chama que não se apaga. A esperança. Mesmo pisada, mesmo ferida, mesmo humilhada, ela resiste. Nos mercados, nos becos, nas lutas diárias, nos batuques que não se calam, nas mães que ainda acreditam num futuro melhor para os filhos. A revolta silenciosa cresce. A consciência desperta. E o dia em que o povo disser “basta” — não haverá gasóleo, nem blindados, nem mentiras suficientes para segurar o grito.
Porque um país que subsidia a desgraça por tanto tempo, um dia terá de pagar a conta.
Sofrido das Chagas