quinta-feira, 7 de agosto de 2025

QUISSANJE - SOM MELÓDICO E HISTÓRIA ANCESTRAL

 



No silêncio do mato fechado,
Ecoa um som velho e sagrado,
Do ventre da terra ecoante,
Surge o quissanje vibrante.

Palmas de ferro, dedos de lua,
Dedilham a alma que flutua,
Notas que curam, que contam, que guiam,
Que acalentam os espíritos, os vivos aliviam.

Instrumento de um povo guardião,
Do Congo à savana, do mar ao interior,
Traz nas teclas a história esquecida,
Dos avós que cantavam a vida vivida.

Quem escuta, sente a febre baixar,
A tosse sumir, o medo passar,
Pois o som do quissanje é encanto gentil,
Remédio da aldeia, ciência subtil.

Cada tecla é um passo no tempo,
Cada melodia um sopro de vento,
Que leva embora o mal e o rancor,
E planta no peito sementes de amor.

Nas noites de lua, em volta da fogueira,
O soba tocava a alma inteira,
E os mais novos sentavam calados,
Bebendo os mitos nos tons entoados.

Falava-se ali de Kimbundu e Kikongo,
De deuses antigos, de Makongo,
Da Nkisi que habita na raiz e no rio,
Do tambor do trovão e do orvalho frio.

Quissanje não é só som, é palavra,
É reza que flui sem voz que se lavra,
É língua dos mortos, dos antepassados,
Que vivem nos sons por nós invocados.

Quando a mãe chora e o filho adoece,
O quissanje toca e o corpo estremece,
Mas não de temor, de vida, de fé,
De espírito quente no toque do pé.

Curandeiro não corta, não injeta agulha,
Seu bisturi é a música que flutua,
Toca a doença que foge assustada,
Pois ali quem manda é a alma encantada.

Na aldeia perdida entre rochas e rios,
Onde as estrelas cantam seus desafios,
O quissanje é lanterna na escuridão,
Guia os passos da iniciação.

Meninos que viram homens tocando,
Mulheres que parem sorrindo e cantando,
Velhos que partem no som do adeus,
De mãos dadas com deuses seus.

Nas bodas, nas mortes, nas curas, nas danças,
O quissanje embala as esperanças,
É voz de Nzambi, é força de Kalunga,
É oração que nunca se cansa.

No ventre de Angola, na pele do Zaire,
No eco de Moçambique que não se pare,
Este som viajou nas mãos do escravo,
Que no porão escuro o levou bravo.

E mesmo amarrado, o som não calou,
Na América nova ele recomeçou,
Virou blues, jazz, virou samba e batuque,
Mas o quissanje, firme, resistiu no truque.

Hoje o jovem na urbe moderna
Desconhece a música eterna,
Mas no gueto, no beat que pulsa,
O som ancestral ainda repulsa.

Pois mesmo no rap, no trap e no funk,
O espírito velho se esconde no tanque,
Rima e melodia, são só variações,
Do velho quissanje em outras canções.

E quando um DJ, num set futurista,
Solta samples de um som tribalista,
É o avô a falar sem ser visto,
No grave profundo do novo batista.

Quissanje, tu és medicina sem bula,
És cura que dança e não se anula,
Teu som é um templo em miniatura,
Um altar de cordas na sua estrutura.

Te tocam os dedos, te afagam os ventos,
Te sentem os corpos, te buscam os tempos,
És bússola, mapa, oráculo, estrada,
Do ontem ao amanhã, és sempre chamada.

E quando eu morrer, quero que toquem por mim,
Quissanje sagrado, do começo ao fim,
Que tua melodia me leve sereno,
Ao colo dos deuses no céu terreno.

Que contes aos filhos que ainda virão,
Das guerras, das fomes, da libertação,
Dos sonhos partidos, dos reinos caídos,
Dos risos roubados, dos cantos erguidos.

Canta de Ginga, de Mutu ya Kevela, 
De Ndemofayo, Ngunguyana e tantos outros,
Do filho que marcha sem ter mais casa,
Da mãe que resiste com fogo nos olhos,
E do pai que trabalha até o osso e os joelhos.

Quissanje, meu mestre, meu livro de aço,
Tua música é reza, é passo e compasso,
És ponte de sons entre mundos distantes,
És tambor do além, és voz dos mutantes.

Se alguém perguntar quem somos afinal,
Mostra o quissanje, som original,
De um povo que vive, que cura, que ensina,
Mesmo na dor, sua alma ilumina.

Pois quem toca quissanje não toca por si,
Toca por vozes que o tempo não viu,
Por mãos invisíveis que guiam a mão,
E fazem da arte, sagrada missão.

Sofrido das Chagas 

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